domingo, 14 de agosto de 2011

Cozinhar. Não apenas.

O ato de cozinhar não se resume a apenas preparar ingredientes e servi-los. Há mais entre o fogão e a pia do que pressupõe vossa vã filosofia.
A arte da cozinha começa cedo, com o acompanhamento quase diário da rotina materna, uma devoção quase religiosa ao vislumbramento das etapas que envolvem o preparo do almoço. Dessa passiva admiração inicia-se a fase da participação mais ativa, seja lavando alface ou a louça. Nesse ponto alguns abandonarão a cozinha de vez. Mas quem disse que no primeiro dia num restaurante começaremos como sous-chef? A louça e o chão sujo são os primeiros passo de um caminho repleto de cascas de legumes, cebolas a serem descascadas e que somente no final terá um prato de louça branco com uma vieira esperando pra ser finalizada com seu molho curry.
Além disso, olhando o momento de preparação de um prato, não nos basta apenas abrir a geladeira cortar legumes e carnes aleatoriamente e num passe de mágica teremos algo criativo e gostoso. Não. Nada disso. São necessárias horas de análise combinatória com os ingredientes disponíveis, frustradas tentativas de temperos e meses se acostumando as mesmas coisas se tornando pratos finais diferentes para que tenhamos algo digno de (auto)elogios.
E acredite, para mim, fiel cozinheira e adoradora de pias limpas e cozinhas organizadas, não há nada mais prazeroso do que viver esse processo por completo.
A felicidade e satisfação que uma boa comida nos traz é capaz de fazer com que eu, durante horas, reflita os pratos que poderiam ser feitos com os itens de minha humilde reserva alimentícia. Ou quem sabe algo que possa ser servido aos amigos num final de um dia cansativo, que custe pouco e agrade a todos.
Ao fim desse processo pensativo, está criada uma expectativa que vai ser responsável pelo ânimo necessário para a verdadeira confecção do, às vezes simples, prato. Planejar mentalmente a ordem de preparo dos ingredientes, calculando com exatidão o tempo de cozimento e a adição de algum tempero no momento correto. E, acreditem, ao mesmo tempo, conversar, rir e ouvir uma música. Posso abrir mão do conforto do sofá e da mera apreciação dos cheiros da comida sendo preparada, mas tenho em troca o camarote Vip para acompanhar a transformação de simples pedaços de carne com cebola triturada, numa maravilhosa lasanha. E o mágico neste caso sou eu.
Nesse meio tempo o arroz pode queimar, o legume passar do ponto e a carne ficar crua. E aí a vontade de lançar a panela de pressão pela janela, junto com a sua cabeça acaba te sufocando. Mas lembre-se: sempre temos na agenda o telefone da pizzaria de dez reais, ou uma dúzia de ovos que poderão se transformar numa nova jornada culinária (supondo que não tenha lançado sua frigideira dentro da privada ainda).
Mas se tudo der certo, chega-se ao ápice da noite, o clímax da cozinha, o momento da revelação final, em que cuidadosamente pegamos nosso prato da coca-cola e organizamos com um carinho materno e expectativa quase incontrolável as partes que farão o prato, sempre finalizando com uma erva, um molho colorido ou quem sabe uma cereja que não é chuchu.
 Aos nossos olhos, a mera composição arroz+feijão+salada+carne, se torna um primor culinário. E a grande satisfação é saber que ao estômago dos que provarão, aquilo também foi um primor. Não ficamos apenas na espera do veredito final, da cara de prazer e dos longos agradecimentos e elogios. Não que isso não seja a razão de grande parte de nossa vida, motivo de sorrisos orgulhosos e felicidade eterna.
O que quero dizer é que cozinhar não é apenas cozinhar e servir. É algo muito mais abrangente e prazeroso. Envolve todos nossos sentidos e exige de nós toda a concentração (durante todo o processo e vida culinária) ao mesmo tempo que serve pra relaxar e apenas satisfazer uma necessidade biológica.  Comida gostosa é feita com amor? Talvez. Acredito mais que a intensidade de qualquer emoção reflete no prato a ser feito, seja ela a raiva, a dor ou frustração. O mero fato de sentirmos enquanto cozinhamos transforma as coisas simples e rotineiras em algo surpreendentemente marcante.

As grandes obras são belas por serem inteiramente belas: o início, o meio, e o fim, que por mais trágico que seja, passa a ser poético e sua tristeza se faz bela pelo fato de que esta parte compõe algo inteiro, muito maior que ele mesmo. Cada parte se completa e nenhuma delas nos emociona sozinha. Elas são necessárias, e por maior o sofrimento, dor e desespero que cada fase possa trazer, ele é vital para que possamos notar as alegrias, amores e belezas do resto da história. Ao final de cada uma delas, deixam em nós algo a ser pra sempre lembrado como apenas uma memória ou como o grande aprendizado de sua vida. Quando termina-se algo que um dia foi bonito, possibilita-se o início de um novo conto, uma nova canção, uma nova história que poderá se tornar eterna ou ter seu fim da mesma forma.
"Que seja eterno enquanto dure". Seja isso um poema, um romance ou uma nova receita.

4 comentários:

  1. Do mesmo jeito que um pintor junta tintas avulsas, mortas e sem graça, transformando-as em uma verdadeira obra de arte, o artista da cozinha realmente surpreende ao pegar ingredientes vários (dos banais aos inéditos) e, como resultado, ter nada menos que uma criação única. Não há pratos iguais, por mais que se repita o ritual. Realmente posso ver isso em você, Glória. Sua paixão por cozinhar, aliada a habilidade que só você tem, nos proporciona momentos únicos ao comer um simples arroz com carne moída. Simples? Algo que envolve tantos sentimentos não pode ser simples.

    Adorei o texto.

    ResponderExcluir
  2. Arrepiada, estou até sem palavras. Tão bonito quanto verídico !

    AIIIIEHHLL AMEYY SUA LINDA ! serio mesmo

    ResponderExcluir
  3. Totalmente excelente. Por vezes não percebemos o quanto é possível dedicarmos emoções a nossas tarefas diárias. Com certeza a culinária da Glória são gloriosas épicas jornadas, e nós ficamos sempre agraciados em provar o final feliz de cada uma delas.

    ResponderExcluir
  4. Cozinhar é um dom, certamente. Um dom que você possui e do qual sabe tirar o maximo proveito! E preparado com amor e dedicação, é sempre mais gostoso! Parabens pela inspiração do texto e pela inspiração na arte de cozinhar! AGUARDO SEMPRE CONVITES!
    Ps: estou sonhando com as trouxinhas ate hoje!

    ResponderExcluir